Ésse, II

sábado, 20 de dezembro de 2008

Era um viajante sem rumo. Sem destino, quase como um andarilho. Não sabia por quê ia a lugar X e não Y, não sabia por quê às vezes tomava o caminho Leste, quando todos achavam que tomaria o sentido Sul ou Noroeste.
Mas levava consigo a câmera fotográfica de sua mente que, sentindo profunda singela felicidade - aquela felicidade despida de confortos e luxúrias com as quais costuma-se construir a imagem distorcida do que é ser feliz - ia guardando para si tudo o que via.
Registrava ali tantas memórias e momentos vívidos de suas andanças e experiências, capturadas através da objetiva de seus olhos e também, da lente do coração. Rostos, mãos, pés, grama, asfalto, terra, córregos, cascatas, flores, árvores, arranha-céus, casinhas, estradas, automóveis e caminhões, praças, parques - enfim, vistas tristes, ultrajantes; visões belas e tímidas; cenas preocupantes ou inusitadas; paisagens cuja beleza era capaz de adentrar o âmago do ser e deixá-lo por alguns minutos estupefato, encantado, a tentar digerir o significado daquilo que contemplavam suas retinas.

Certa feita parou a conversar com um douto cidadão de uma das metrópoles pelas quais passara, homem de sucesso, capitão de indústria e investidor, seguro de si e gozando da plenitude material que tanto se busca aqui. Este homem, estudado, graduado, diplomado, experiente perguntava-se ao mesmo tempo por que é que perdia ali seu tempo com aquele indigente. Mas, incrivelmente, sua curiosidade - ou talvez era seu lado direito do cérebro? quem sabe até era mesmo o seu íntimo, a profundeza do seu ser, aquele local da alma onde ele sabia que, mesmo com tanta riqueza e realização profissional, não era plenamente feliz? - o fato é que isto o impedia de deixar o andarilho sem antes argüi-lo, saber a que vinha ali, e o que havia aprendido com suas andanças.

Disse-lhe o viajante: "Não sei. Nada sei! Por haver vindo aqui, não conheço o motivo; de toda a minha vida de andanças, sei que nada sei e nenhum conhecimento tenho. Por quê estou a falar com V. Senhoria, caro amigo, também não sei.
"Posso, no entanto, dizer-lhe que sinto. Senti, sinto, e sempre sentirei. Ah sim, nesta vida senti plenamente. Senti a felicidade, a dor, o calor, o frio, o cansaço, o alívio, e tantas outras coisas. Senti o amor, a decepção, a compreensão e a incompreensão. E de tudo isto, não sei nada. A não ser apenas uma coisa: vocês todos, eu, nós: somos uns tolos!
"De tudo queremos saber, queremos conhecer, tudo queremos ter, e nos esquecemos de sentir. Sentir tudo o que se pode sentir nesta vida, e que nos é presente de Deus! E é o sentir que me guia; meu destino é incerto, não conheço qual será meu paradeiro ao fim de uma jornada de andanças.... só sei que sinto e sentirei sempre!"

O homem de negócios pôs se a pensar por alguns instantes, e, voltando a si, chegou à conclusão de que estava mesmo a perder seu tempo. Que tolices falava o viajante! E também o íntimo da sua alma... por que é que ansiava tanto ouvi-lo, em vez de deixá-lo? Delírio puro, só pode ser! Afinal ele era feliz e realizado, com suas casas, carros, suas gravatas e seus papéis.
E assim deixou o andarilho a falar só, e voltou à sua rotina de capitão-de-indústria.

Conta-se que naquele dia, ele finalmente morreu, mas nunca se deu conta.