domingo, 22 de fevereiro de 2009

Se pudesse escolher, não queria ser molde. Mas também não gostaria de ser inteiramente como o metal líquido e incandescente que, amorfo, só sabe ter a forma que o molde lhe dá.

Fazer como a forma, que sempre confere a cada porção do líquido e luminoso metal o mesmo desenho , me parece injusto, egoísta até! Mas agir tal qual como o metal que não sabe senão ter a forma de outrem, parece-me sem graça, tácito e passivo demais...

Haveria uma opção entre um e outro? Parece que ser-me-ia o ideal, mas... ainda não sei de sua existência.

Pois bom seria saber manter a minha forma principal, a essência, sabendo no entanto ajustar uma aresta aqui, uma curva ali, mudar uma face ou uma superfície acolá, para perfeitamente me adaptar. Sendo nem tanto molde, nem tanto metal em fusão.

Ao fim do dia, algo leva-me a crer que este meu anseio emerge não do meu estado fixo e invariável de forma, ou da necessidade de sentir-me livre, solto, fluído como o amorfo metal. Mas sim que, como molde que sou, talvez não esteja no mais adequado ponto da linha de produção, ou quem sabe porque não me sinto ainda apto a sentir as paredes externas do meu ser lentamente derreterem e esvaírem-se rumo à grande massa fluída do aço fundido.

Manual prático de leitura

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

e então?



não sei dizer.




o fato é que consigo perceber, mas não expressar a você, que agora me lê.




Não leia estas linhas!



Não leia estes posts!





Não percas tempo aqui nestes textos imóveis: Passa a ler agora os meus lábios, meu rosto, meus fios de cabelo, minha pele, meus joelhos e pés. Lê minhas ondas cerebrais. Consome minha massa cinzenta e a carne do meu coração. Aproveita o sangue enquanto está ainda morno, pulsante! Estou aqui, como um livro inédito, palavras como que ao vento e ao sabor das ondas do mar, mas o fato é que sou e estou como páginas repletas de sentenças quem sabe sem nexo, mas talvez com duplo sentido.




Um livro não se faz ler, apenas aguarda pacientemente até ser aberto e lido.






Contrariando a convenção, apresento por conta própria as minhas páginas e faço com que os parágrafos delas saltem, pululem e dancem pelo ar, circundando as árvores, os automóveis, os postes, as lojas e a tua suave, delicada cintura e o teu rosto. Acariciando tuas sobrancelhas e o cabelo, estas palavras hão de adentrar os teus ouvidos e ecoar dentro do teu peito, para lá dentro da tua alma calarem.



Silêncio.



Um hiatus atemporal. Pausa-se a imagem do filme e as páginas se esvaziam.


Soltarei a respiração quando as palavras que deixaram as minhas páginas encontrarem a hospitalidade da moradia do teu ser.

Ésse, II

sábado, 20 de dezembro de 2008

Era um viajante sem rumo. Sem destino, quase como um andarilho. Não sabia por quê ia a lugar X e não Y, não sabia por quê às vezes tomava o caminho Leste, quando todos achavam que tomaria o sentido Sul ou Noroeste.
Mas levava consigo a câmera fotográfica de sua mente que, sentindo profunda singela felicidade - aquela felicidade despida de confortos e luxúrias com as quais costuma-se construir a imagem distorcida do que é ser feliz - ia guardando para si tudo o que via.
Registrava ali tantas memórias e momentos vívidos de suas andanças e experiências, capturadas através da objetiva de seus olhos e também, da lente do coração. Rostos, mãos, pés, grama, asfalto, terra, córregos, cascatas, flores, árvores, arranha-céus, casinhas, estradas, automóveis e caminhões, praças, parques - enfim, vistas tristes, ultrajantes; visões belas e tímidas; cenas preocupantes ou inusitadas; paisagens cuja beleza era capaz de adentrar o âmago do ser e deixá-lo por alguns minutos estupefato, encantado, a tentar digerir o significado daquilo que contemplavam suas retinas.

Certa feita parou a conversar com um douto cidadão de uma das metrópoles pelas quais passara, homem de sucesso, capitão de indústria e investidor, seguro de si e gozando da plenitude material que tanto se busca aqui. Este homem, estudado, graduado, diplomado, experiente perguntava-se ao mesmo tempo por que é que perdia ali seu tempo com aquele indigente. Mas, incrivelmente, sua curiosidade - ou talvez era seu lado direito do cérebro? quem sabe até era mesmo o seu íntimo, a profundeza do seu ser, aquele local da alma onde ele sabia que, mesmo com tanta riqueza e realização profissional, não era plenamente feliz? - o fato é que isto o impedia de deixar o andarilho sem antes argüi-lo, saber a que vinha ali, e o que havia aprendido com suas andanças.

Disse-lhe o viajante: "Não sei. Nada sei! Por haver vindo aqui, não conheço o motivo; de toda a minha vida de andanças, sei que nada sei e nenhum conhecimento tenho. Por quê estou a falar com V. Senhoria, caro amigo, também não sei.
"Posso, no entanto, dizer-lhe que sinto. Senti, sinto, e sempre sentirei. Ah sim, nesta vida senti plenamente. Senti a felicidade, a dor, o calor, o frio, o cansaço, o alívio, e tantas outras coisas. Senti o amor, a decepção, a compreensão e a incompreensão. E de tudo isto, não sei nada. A não ser apenas uma coisa: vocês todos, eu, nós: somos uns tolos!
"De tudo queremos saber, queremos conhecer, tudo queremos ter, e nos esquecemos de sentir. Sentir tudo o que se pode sentir nesta vida, e que nos é presente de Deus! E é o sentir que me guia; meu destino é incerto, não conheço qual será meu paradeiro ao fim de uma jornada de andanças.... só sei que sinto e sentirei sempre!"

O homem de negócios pôs se a pensar por alguns instantes, e, voltando a si, chegou à conclusão de que estava mesmo a perder seu tempo. Que tolices falava o viajante! E também o íntimo da sua alma... por que é que ansiava tanto ouvi-lo, em vez de deixá-lo? Delírio puro, só pode ser! Afinal ele era feliz e realizado, com suas casas, carros, suas gravatas e seus papéis.
E assim deixou o andarilho a falar só, e voltou à sua rotina de capitão-de-indústria.

Conta-se que naquele dia, ele finalmente morreu, mas nunca se deu conta.

Tempestade

sábado, 18 de outubro de 2008

Caem as gotas d'água transparente sobre a superfície cinza-asfáltica. Caem sobre o verde das folhas, e sobre as calçadas, e sobre a terra marrom.

Cai a terra marrom com a chuva, sobre o cinza-asfáltico da rua. Caem também as folhas verdes, que amanhã serão marrons, beges, escuras e sem vida.

Chovem as folhas das árvores para o marrom da água no lago, ao lado da rua de cinza asfáltico ladeada pelo verde da grama do parque.

Chove o cinza asfáltico por sobre o marrom da terra para o cobrir e pavimentar. Ruas, calçadas caem onde antes havia o verde das folhas e o transparente das águas.

Acinzenta a chuva que antes era verde, molhando o asfalto sem vida e já marrom coberto de folhas transparentes.

O asfalto transparente corta as folhas de cinza-asfáltico, chovendo água verde por sobre a cristalina terra das folhas marrons.

Verde, chove

Cai, cinza

Morrer, marrom

Transparente, transpira minh'alma.

Quando em Roma...

domingo, 29 de junho de 2008

Ali estava eu.

Cercado de romanos por todos os lados, pisando em solo de Roma. Eu, um bárbaro exógeno ao povo de Julio César, esquecendo (ou tentando esquecer) os costumes e tradições da minha raça, e procurando, uma vez estando em Roma, fazer como os romanos.

Evidente que, para fazer como os romanos, há de saber como os romanos. Conhecer sua arte, sua música, sua cultura, seus costumes. Sua comida. Seus dias e noites, suas festas.

Ora ainda, para fazer como os romanos, há de ver como os romanos. Encarar o mundo e as pessoas como eles o fazem.

Para realmente fazer como os romanos, enfim, há de sentir-se romano.

E lá estava eu, um bárbaro exógeno. Exógeno bárbaro, visivelmente destoante da multidão, tentando enganar a mim mesmo e a todos, que sei fazer como os romanos, sei ser um deles.

Mas a minha bárbara origem não se deixa esconder.

A semente

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Mais uma vez, ela me pegou. De surpresa, obviamente. Ora pois! E quando é que ela não me pega de surpresa? Ah, tu, vida! És sempre tão moleque, sempre ages repentina e fatalmente! E, por mais que eu queira, acredite, necessite, deseje, não consigo nunca estar preparado para as tuas peraltices.

E agora, resolves implantar mais uma vez em mim a dúvida. Agi, querendo convencer-me que despretensiosamente, apenas amistosamente, sem segundas intenções.

Confesso, atônito, que a reação que obtive não foi a que esperava...

Mas o meu íntimo não se engana, nem se deixa enganar, e teima por me lembrar, que não foi. Não foi o que? Nem despretensiosamente, nem sem segundas intenções, nem apenas amistosamente. Que farei? Deveria ter resistido? Serei agora o culpado por causar confusão na vida de outrem?


Acredito, pois, que não. Tudo o que fiz foi entregar a semente da discórdia. Lançá-la ou não aos férteis terrenos da alma depende de quem a recebeu.

Mas a dúvida, ah, esta não cala...

Das mornidões e dos meios-termos... considerações sobre o equilíbrio

terça-feira, 10 de junho de 2008

São tantas as virtudes, as vaidades, as emoções, as razões, os desvarios, as sapiências, sobre as quais pode-se falar. De todas elas, misturada junto àquelas que pendem mais para Este, e as que se retorcem mais para o Oeste, as que alogando-se ficam ao Norte, e as que vergam para o Sul, está uma que é todas, sem no entanto ser nenhuma em específico; de tudo faz parte, mas parece que nada é exatamente sua composição.

Ora, ouvimos diuturnamente amigos, pais, irmãos, tios, avós, professores, colegas, conhecidos, desconhecidos, afetos e desafetos, a exortar-nos que sejamos, não mais para cá, nem mais para lá, nunca tão acima, nem tão abaixo, mas sim no "meio-termo".

Estar ao centro, não pender para lado algum, firme, estaqueado como um alto e rígido pinheiro. Para onde foi a personalidade? Aquilo que me torna no "eu", e que te torna no "tu"? Estamos agora condenados à inocuidade, à infinita exatidão do ser igual a todos?

Aqui do alto (ou do fundo) da minha parcialidade não-central e não-igual prefiro acreditar que a real virtude, a verdadeira essência da convivência, não é o mero ser-igual, a mornidão, a indefinição. Bem se sabe: o que é morno, vomitar-se-á, lançar-se-á ao chão, desprezar-se-á... O que devemos exaltar, procurar, cultivar, é aquela virtude que se compara à simplicidade de uma criança, doce criança que (feliz dela!) não quer e não sabe julgar, pois julgar é condenar.

A este, que é como que um infante ainda não-desvirtuado, não-traumatizado pelos meios-termos do mundo. Mancebo doce e puro, inocente como as flores do campo, tu sim sabes respeitar aquilo que de cada um é intrínseco, aquilo que nos dá sabor, perfeitas imperfeições que nos fazem ser. E para conhecer-te há que antes saber quem é teu irmão, varão sisudo, enérgico, mas infinitamente terno, chamado Discernimento. Discernimento! Tu, que és mais perfeito e excelente do que o julgar! Desejo, agora e sempre, utilizar-te! Para quê? Quero ser capaz de cuidar, de tal modo que, em celebrando os meios-termos, não caia na desgraça de exaltar a mornidão, a indecisão, o meio-ser e o meio-estar, o quase-crer, o quase-ver; mas sim, dar valor ao teu nobre irmão, o Mancebo, ao qual deu-se o nome de Equilíbrio.